Outro dia — que na verdade era hoje, como todos os dias têm sido — percebi uma coisa que talvez você também tenha deixado passar entre um café morno e uma mensagem urgente.
A gente não acorda mais amanhã.
Sim, parece bobagem dita assim, sem intervalo ou ponto de exclamação. Mas experimente pensar com carinho: quando foi a última vez que você acordou no amanhã?
Quando éramos crianças, dormíamos ainda dentro do ontem e acordávamos, gloriosos, no território desconhecido do dia seguinte. “Boa noite, até amanhã”, dizia-se com esperança, como quem embarca numa nave rumo ao futuro. E o amanhã chegava, com cheirinho de pão, mochila pronta e um mundo novo a aprender.
Mas agora... bem, agora a gente dorme depois da meia-noite. O calendário vira e nem vemos. Acordamos, invariavelmente, no mesmo dia em que fomos dormir. Já não há mais travessia, nem desembarque. Só continuidade.
O hoje, esse teimoso, virou monopólio. Tudo é hoje. As contas vencem hoje, os prazos terminam hoje, a vida escorre — pasme — hoje. E o amanhã? O amanhã virou um conceito: algo que se espera, mas não se toca. Como fila de banco ou dieta que começa na segunda-feira. E como é sempre hoje, torcemos pelo fim de semana, pelo fim do mês e o fim do ano, mas não há o que fazer, é sempre hoje.
Talvez por isso estejamos tão cansados. Porque estamos há anos vivendo o mesmo dia. O corpo até dorme, mas a alma não muda de página. Acordamos já com o ontem pendurado no pescoço e com o hoje nos empurrando para frente, sem delicadeza. Que sorte tem os pequenos de ter mais de um tempo! Em que momento será que eles perderão o seu amanhã? Torço para que eles saibam aproveitar bem o amanhã, já que o hoje não tem idade pra isso.
Se eu tivesse tempo, inventava uma campanha: “Resgate o amanhã”. Faríamos um mutirão para dormir antes da meia-noite, sonhar coisas boas e acordar com aquele frio na barriga de quem tem um novo dia inteiro nas mãos. Mas isso exigiria coragem, e menos Netflix. Mas a gente sempre tem tanta coisa, tanta conta, tanta... tudo é tanto e a gente é tão pequeno, mas não o suficiente para passar despercebido. Se eu tivesse além do tempo alguma espécie de poder, eu mandaria em mim, esqueceria o hoje e faria valer o amanhã. Mas, não tenho tempo nem poder.
Por ora, contento-me em lembrar: o amanhã ainda existe — mas anda tímido, encabulado, com medo de não ser bem-vindo. Talvez esteja esperando só um pouco de espaço no nosso relógio, ou um suspiro antes de mais um scroll.
Então, boa noite — de verdade – a não ser que leia isso pela manhã. Que você durma cedo. Que acorde amanhã. E que sinta, mesmo que só por um instante, que o tempo voltou a ter futuro.
E se nunca mais acordarmos amanhã, talvez seja por isso que a vida tenha perdido aquele brilho de estreia. Porque viver apenas no hoje, sem nunca mais atravessar para o outro lado da meia-noite com a alma limpa, é como existir num eterno ensaio sem estreia, num palco onde as luzes já acenderam, mas o público nunca chegou. E quando a gente menos espera, o último hoje chega — e não há mais depois, nem descanso, nem promessa. Apenas o silêncio onde um dia houve a esperança do amanhã.
Que venha o amanhã!