Carlos acordou e percebeu que algo estava errado. Não era a luz tímida da manhã filtrando-se pela cortina nem o peso rotineiro do cansaço. Era a ausência. Levantou a mão diante do rosto, pousou dois dedos no pulso esquerdo e esperou. Nada. A micro poeira que plainava no feixe de luz não se movia, como se o próprio ar tivesse morrido.
Tentou o pulso direito. Nada outra vez. O peito não arfava, o coração não golpeava o silêncio. Mas estava ali, sentado na cama, olhos abertos, mente funcionando – até demais para quem estava morto.
Andou pela casa sem pressa. A cafeteira borbulhava na cozinha, o relógio da parede marcava 06h57. O mundo girava como sempre. No espelho, a mesma face pálida e negligenciada. Ele sorriu de canto de boca, mas nem isso pareceu real. Como professor, Carlos deveria estar a caminho do trabalho há mais de dez minutos, evitando assim os olhares punitivos. Mas nem isso o motivara.
O problema não era fisiológico, percebeu. Há tempos, Carlos vivia sem ritmo, sem fluxo, sem vibração. O pulso não desaparecera naquele instante; ele já não pulsava havia anos. As rotinas mecânicas haviam esvaziado cada batida, e agora, sem aviso, seu corpo decidira contar a verdade. Carlos estava morto e não era de hoje.
Tentou lembrar da última vez em que sentiu o peito acelerar de verdade. Um susto, um desejo, uma paixão? Nada. Vivia no automático, cumprindo funções, preenchendo espaços. Sempre disponível, nunca presente. O tique-taque dos ponteiros era mais vivo do que ele. Naquele momento, passou a ter inveja do mais débil eletrodoméstico ou do menor objeto, como um clip de papel, pelo menos eles tinham função clara e eram bons no que faziam.
Sentou-se à mesa e observou o café esfriar. Então, em um impulso raro, abriu a janela, respirou o ar fresco da manhã. A hora já não faria diferença, a morte era serena com os compromissos. Sentiu o cheiro do pão vindo da padaria da esquina, ouviu o riso de uma criança na calçada. E ali, num sopro quase imperceptível, um resquício de vida atravessou sua pele. Talvez fosse o filho de Esteves que um dia Álvaro o apresentou, mas que diferencia faria quem quer que fosse? Soubera que Álvaro fora salvo por tal Esteves, quando este ainda fumava, pelo simples fato de existir a porta da Tabacaria. Será que a existência do seu filho, que Álvaro não sabe sequer o nome, seria também sua salvação?
Carlos não sabia se o pulso voltaria. Mas entendeu que, se quisesse sentir algo de novo, precisaria parar de apenas existir.
E, pela primeira vez em muito tempo, decidiu tentar. Ao olhar para o relógio, este marcava 06h58, mas como isso seria possível? A reflexão de uma vida em apenas um minuto? Carlos entendeu que o tempo corre diferente quando se está morto.
Pegou todas as coisas bobas que lhe eram caras para o ofício, desceu até a garagem e bem devagar saiu com o carro. Logo na esquina, estacionou o carro, não porque chegara ao destino, mas porque a pressa não mais o incomodava. Era hora de viver, como decidira há pouco. Desceu e perguntou a Esteves o nome do menino que com sua gargalhada o salvara de si mesmo.
“ – Bruno!”, disse Esteves. O relógio marcou 07h05, o universo estava em ordem e, para variar, Carlos estava atrasado, até mesmo para a própria morte.
Ontem aniversário da Anna e hoje do João, que juntos com a Nina, fazem o meu tempo valer a pena.