Na esquina das quatro da tarde, onde o tempo faz silêncio, encontrei um papel amarelado, dobrado sete vezes, esquecido no bolso de um sobretudo que já não uso. Não havia remetente, não havia data, apenas palavras. Uma lista.
“Você se lembra?”, dizia o topo, como se fosse alguém me cutucando com ternura e urgência.
Lembrei.
Lembrei do menino que jogava pião no paralelepípedo enquanto esperava o pai chegar com pão quente. Lembrei da menina da sexta série que me emprestou uma caneta vermelha e depois partiu para sempre para outro estado... ou estado de espírito. Lembrei dos nomes que a gente nunca mais pronuncia, mas que o coração continua a soletrar em silêncio.
Baudelaire, se porventura tivesse caminhado por estas calçadas quebradas de minha cidade, talvez teria descrito as dores como flores mortas em jarros de vidro... belas, intensas, e fadadas ao pó.
A lista prosseguia:
— Do cheiro de mato quando chovia na infância.
— Da voz de uma avó que nunca mais sonhei.
— De um amigo que desapareceu em algum abismo que a gente finge que não viu.
— Dos versos que escrevi e não entreguei.
— Da coragem que tive antes de aprender o medo.
— Da dança com alguém que eu jurei não esquecer, mas que agora me escapa o nome.
Ah, as listas… Quem as escreve, procura ordenar o caos. Mas essa, em especial, parecia escrita pela própria cidade. Cada item, uma janela antiga. Cada linha, um banco de praça com nome de gente que já se foi. Uma igreja, um bar, uma esquina onde deixei pedaços do que fui.
A memória não é cronológica. É poética.
É um mosaico que nos assombra com luzes e sombras. Cada lembrança é como um pequeno vitral estilhaçado pelo tempo, fragmentos coloridos que brilham quando a luz certa os toca, mas que também podem cortar a pele se os apertamos com força demais. A memória, afinal, não é feita para ser domada. Ela surge com um cheiro, uma canção, um silêncio, e nos mergulha em mares que pensávamos ter secado.
E o que Montenegro canta é o que nos resta: listar. Listar é resistir à perda total. É dar nome às ausências como quem reacende velas para fantasmas queridos. Escrever nomes, fatos, gestos, vozes. É como se tentássemos costurar o tecido puído da nossa existência com linha fina e paciência de avó. Não para restaurar o passado, mas para não deixá-lo se apagar sem luta.
Porque um dia, e esse dia sempre chega, ao fim da tarde, quando o mundo parecer estranho demais, quando as coisas tiverem mudado a tal ponto que até o nosso próprio reflexo parecer um desconhecido, tudo o que desejaremos será nos sentar, cruzar as pernas, suspirar e lembrar. Lembrar para reconhecer a si mesmo. Lembrar para ainda pertencer. Lembrar, sobretudo, para não permitir que o esquecimento nos roube a beleza do que, um dia, nos fez ser.
Não para chorar, embora isso aconteça.
Mas para manter vivos os fantasmas que, apesar de ausentes, ainda nos dão sentido.
No fim da lista, em letra quase apagada, havia uma frase:
“Lembre-se de quem você era, para não se perder de quem você é.”
Dobrei o papel. Guardei de novo no bolso. E segui.
Com a alma mais leve, mas o coração… deliciosamente carregado.