GUILHERME BOMBA

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A morte lenta de cada dia

Da Redação

| Edição de 27 de março de 2025 | Atualizado em 27 de março de 2025

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A morte nem sempre chega de forma brusca, inesperada, arrebatadora. Essas mortes são tristes e arrasadoras, ainda mais quando é um jovem, um anjo. Mas há um outro tipo de morte, mais sutil e sorrateira, que nos escapa à primeira vista. É aquela que se esconde nos detalhes do cotidiano, nas pequenas renúncias que aceitamos sem perceber. É a morte lenta de cada dia. Como se cada roer de unha tirasse um minuto do tempo que ainda não foi.

Dona Linda sente essa morte toda manhã, ao destrancar a porta da sala de aula e encarar as carteiras enfileiradas. Há trinta anos, ensinava com paixão, acreditando que poderia transformar vidas. Hoje, repete as mesmas explicações para alunos que mal prestam atenção, enquanto pilhas de provas se acumulam sobre a mesa. O salário encolheu, o respeito minguou, e as cobranças aumentaram. A burocracia engoliu o encantamento, e ela se pergunta quando foi que passou a apenas suportar os dias, em vez de vivê-los. Linda tem quase certeza de que seu diretor simplesmente a odeia, mas nunca teve certeza.

João sente essa morte toda noite, quando chega em casa exausto e encontra os filhos já dormindo. Queria ter tempo para brincar com eles, para ouvir suas histórias, mas o trabalho nunca acaba. As planilhas e relatórios o perseguem mesmo depois do expediente. Ele sonhava em ser arquiteto, construir algo grandioso, mas se tornou gerente de um escritório que consome sua energia e seu tempo. Os boletos se impõem, os prazos apertam, e ele se tornou um pai ausente dentro da própria casa. Os anos passam, e João se vê preso entre o que precisa fazer e o que gostaria de ter sido. Entre um cigarro e outro, ao menos fica feliz de ter permanecido.

Morre um pouco aquele que silencia diante da injustiça, que desiste de um sonho por medo, que abandona a própria essência para caber em um molde que não lhe serve. Morremos quando nos deixamos engolir pela rotina sem pausas, pelo relógio que dita nosso ritmo sem espaço para respirar. Morremos quando o encanto da infância se dissolve na aridez da vida adulta, quando o riso fácil cede lugar ao cansaço acumulado. Cadê o brilho que estava aqui? Quem foi que apagou a luz?

A morte lenta se esconde no automatismo. No “bom-dia” que se diz sem olhar nos olhos, na pressa que nos faz esquecer de notar o pôr do sol, no almoço engolido entre reuniões. Se esconde no acúmulo de dias sem significado, no peso das responsabilidades que sufocam os sonhos, na desistência disfarçada de maturidade. No domingo à noite que traz angústia, na segunda-feira que começa com o desejo de que a sexta chegue logo. No corpo que acorda cansado antes mesmo de sair da cama. Maldito seja o Fantástico! Imagine o desespero de morrer já estando morto?

Mas há respiros. Há pequenas insubordinações contra essa morte cotidiana. Dona Linda reencontra um pouco do que foi quando vê um aluno brilhar os olhos ao entender uma explicação, quando percebe que, apesar de tudo, ainda planta sementes. João encontra um alívio ao se permitir chegar mais cedo em casa uma vez na semana, ao ler uma história para os filhos antes de dormir. Pequenos gestos, pequenas revoluções internas contra a engrenagem que os tritura.

A morte lenta de cada dia pode ser interrompida por escolhas simples, mas necessárias. Um pouco de arte, um pouco de afeto, um pouco de coragem para não se tornar apenas um corpo em movimento. E, no fim das contas, talvez seja isso: não apenas existir, mas insistir em estar vivo.