Havia nele — e em tantos à sua volta — um pouco de Ícaro. Carregava nos ombros o desejo de voar mais alto do que o permitido, como se a vida fosse apenas o céu aberto e o sol, o destino inevitável. As asas, frágeis e coladas com cera, pareciam resistir à pressa, à juventude e às ilusões, mas sempre ameaçavam ceder diante do calor do mundo.
Via-se isso em sua própria história: a urgência de provar valor, de conquistar reconhecimento antes da hora. Cada aprovação, cada elogio, cada curtida era uma pena nova, uma ilusão de firmeza. Mas, como as asas digitais, tudo se derretia com facilidade. A ansiedade, o cansaço, as frustrações eram apenas versões modernas do mesmo sol que sempre derreteu a cera.
Também reconhecia em si e nos amigos a rebeldia adolescente de Ícaro. Dédalos modernos tentavam alertar: “não voe tão alto, não desafie os limites”. Ainda assim, ele e tantos outros se lançavam no risco. Um acelerava o carro como quem buscava liberdade; outro mergulhava em paixões arrebatadoras como se amar fosse um salto no vazio. E cada um deles carregava o mesmo destino: asas frágeis, prestes a se desfazer.
Na rotina contemporânea, os enganos multiplicavam-se. As asas tecnológicas — redes sociais, telas brilhantes, o eterno desejo de ser visto — eram apenas mais uma forma de acreditar que se estava no alto. Bastava, porém, o silêncio de uma madrugada, a ausência de mensagens ou a falha de conexão para lembrar que aquilo não sustentava ninguém.
E havia também as desilusões, tão inevitáveis quanto o calor do sol. Caía-se quando o amor não correspondia, quando a amizade se revelava interesse, quando o sonho tão alimentado não passava de miragem. A queda nunca vinha de uma vez — era lenta, arrastada, dolorosa. Um desmoronamento interno que fazia Ícaro compreender que o voo nunca foi só liberdade, mas também o risco permanente de se despedaçar contra a terra.
Mas não era apenas o próprio peso que arrancava penas das asas. Havia o outro lado: quando, sem perceber, faziam os outros sofrerem. A indiferença diante de alguém que pedia atenção; a frieza de um silêncio calculado; a palavra dura que feria mais que qualquer queda. Cada gesto desses arrancava uma pena de quem estava ao lado — uma namorada que esperava cuidado e recebeu descaso, um amigo que pediu ajuda e recebeu distância, um filho que quis colo e recebeu pressa. E, ironicamente, a cada pena arrancada dos outros, eram as próprias asas que se enfraqueciam, porque ninguém voa sozinho.
Ele observava também os que caíam: o colega que estudava até desmaiar, a jovem que aceitava tudo no trabalho para não ser esquecida, o rapaz que buscava nos olhos alheios um reflexo que jamais encontraria em si. Todos despencando, todos experimentando a queda de Ícaro, mesmo sem perceber.
Talvez a vida fosse exatamente isso: a medida impossível entre o voo e o chão. A sabedoria não estava em tocar o sol, mas em suportar o percurso. Ainda assim, quem poderia resistir à tentação de tentar?
E assim seguia, olhando para o céu com medo e desejo. Sabia que as asas eram frágeis, que um dia a cera se dissolveria. E talvez a verdade mais dura fosse esta: não há vitória em continuar tentando, porque cedo ou tarde todos caem. O que resta é apenas a certeza de que a terra não perdoa e de que, na queda, sempre se perde mais do que se imaginava ter.