Diziam que ele era feito de vidro. Não que fosse transparente, mas bastava um descuido e lá estava: trincado. Um olhar atravessado abria fissuras. Uma palavra mal colocada rachava a superfície. O mundo, que parecia de ferro para tantos, para ele era um campo minado de quedas e colisões. Se ele fosse de plástico como os balões, já teria estourado nos primeiros espinhos, mas não, era de vidro, marcado, manchado e até mesmo rachado, era ainda ali, entre o que vê de fora e o que se é por dentro.
Aos olhos dos outros, era frágil demais. Aos seus próprios, era apenas alguém que vivia se curando. Aprendeu a colar seus pedaços com a paciência de um artesão: cola invisível para as rachaduras, remendos que de longe pareciam perfeitos, mas de perto denunciavam cada fratura. Parecia um mapa de hidrografia de perto, repleto de ranhuras que iam de uma ponta a outro de seu corpo, cada uma por um motivo seriamente banal ou comicamente sem importância. Tinha gente que lhe marcava a pele com a digital, com mãos sujas ou suadas, mas algumas marcas, nem o limpa-vidros mais eficiente era capaz de limpar. Entre marcas e ranhuras, o homem de vidro passava os dias tentando se manter inteiro em um mundo que o queria em cacos, nem que fosse para remontá-lo em um mosaico padronizado.
Diziam a ele que o tempo curava. E ele sabia: o tempo até secava a cola, mas nunca devolvia a inteireza. As cicatrizes ficavam ali, arranhando a superfície. Recordações sólidas de que já havia se quebrado naquele ponto. Esquecer seria perigoso: a memória da dor era sua autodefesa. Assim como o homem de vidro, às vezes, alguém te machuca, te fere, te ofende e te quebra, mas nem o tempo ou a benevolência religiosa de perdoar o seu irmão é capaz de curar a ferida. Disseram que ele deveria se libertar da dor e do rancor, pois só ele sofreria em guardar o sentimento, mas o homem de vidro, sabia o quanto era sensível a sua pele, ainda que exposto no translúcido do vidro, o coração também era fraco, já que era só carne com uma vontade própria de continuar batendo.
O homem de vidro, com os anos, descobriu uma verdade incômoda: não adianta apenas esperar que o tempo cole os cacos. As ranhuras podiam ser polidas o quanto fosse, elas continuariam ser ranhuras, mas por que arriscar tornar o que estava tão frágil em vidro quebrado? É preciso mudar de lugar. Porque de nada adianta remendar-se no mesmo chão onde sempre cai, na mesma estante que sempre balança, no mesmo vento que sempre o derruba. Fechar a janela pode até ajudar, mas o vento ainda dará um jeito de entrar e o jogá-lo contra a parede e o chão frio. O vento não é inimigo, se estiver no lugar certo. No mar, ele move as velas que nos levam longe, assim como as pipas no céu, mas para quem quer contar lantejoulas ou apagar a vela do bolo de aniversário, ele é inimigo. A chuva faz o campo florescer, mas te impossibilita de acender o cigarro e bagunça o cabelo da menina. Nem sempre é o que, nem quando, mas onde. Astrofísica básica: tempo e espaço. Só o tempo não poderia curar o homem de vidro.
E assim, ainda trincado, ainda feito de vidro, decidiu: não é fraqueza trocar de cenário. É sabedoria buscar lugares onde os choques sejam mais raros. Ser vidro de vitrine, de tampão de mesa, de suporte de shampoo, do aquário ou do para-brisas do carro, é ser vidro sempre, mas com propósitos diferentes. Para ele, era impossível ser blindado, pois foi criado para ser leve, transparente e durável em um mundo de martelos e dedos sebosos. Ele podia não ser o melhor vidro, mas talvez só estivesse no lugar errado e precisasse fazer valer cada pequena marca. Porque viver, afinal, não é nunca se quebrar — é escolher onde as quedas doem menos.