O caso de uma mulher negra, moradora de Boavista, Roraima, que vivia em um relacionamento violento e teve a casa em que vivia incendiada pelo agressor. Uma moradora do Calafate, periferia de Salvador, que enfrentava um relacionamento abusivo longo e sofria agressões porque o parceiro não aceitava a atuação dela em um coletivo de mulheres que combatia várias formas de discriminação. Uma jovem travesti de Fortaleza que teve de suportar violência sexual cometida até mesmo por homens que eram seus familiares.
Essas histórias reais parecem fazer parte de arquivos de uma delegacia de proteção às mulheres. Mas estão reunidas e expostas em um tipo de lugar em que não é tão comum relatos com essa dramaticidade.
Notícias relacionadas:
- Vida e obra de Heitor dos Prazeres são tema de exposição no Rio.
- Sesc Pinheiros, em São Paulo, recebe exposição Retratista dos Morros.
- Exposição ressalta a importância das lanternas para a cultura coreana.
A cidade de Paraty, na Costa Verde do Rio de Janeiro, é um dos principais destinos turísticos do estado. Com cerca de 45 mil habitantes, é um dos ícones da arquitetura colonial no país e tem o litoral recortado por belas praias e ilhas. Até o dia 3 de setembro, o Polo Sociocultural Sesc Paraty recebe a exposição
Retratos Relatos – subvertendo a dor
, que oferece aos visitantes histórias de violência de gênero e superação.
A ideia da exposição é da artista visual Panmela Castro. Ela mesma com um histórico de violência doméstica. Ao se tornar uma ativista contra a violência de gênero, passou a receber mensagens de outras mulheres. “Mulheres do Brasil todo passaram a me abordar e contar suas histórias de vida. A maioria delas quer fazer algo com essa dor, dor de histórias que muitas vezes não foram contadas para ninguém. Elas veem em mim um porto seguro, uma pessoa para quem elas podem se abrir. Então a gente faz algo com essa dor que é transformá-la em arte”, disse a artista nascida no Rio de Janeiro.
Sem culpa
Lana Abelha Rainha é a moradora de Boavista que teve a casa incendiada pelo agressor. Ela se emociona ao contar para a Agência Brasil o que sentiu ao se ver retratada, ao lado do relato exposto dela. “Era minha história ali pregada no local, onde todas as pessoas passavam”.
Para ela, a exposição de várias histórias de sofrimento e superação é uma forma de não se sentir culpada. “Quando você vê várias mulheres com histórias parecidas, você começa a entender muito claramente. Nunca fui culpada pelo que aconteceu, assim como aquelas mulheres também não foram”.
Lana acredita que os relatos têm o poder de evitar que surjam outros casos de vítimas da violência de gênero. “Se eu tivesse escutado essas histórias antes do que eu passei, se eu tivesse sido alertada por falas de outras mulheres, talvez eu tivesse enxergado sinais dentro daquela relação, que eu não enxerguei”.
Os casos expostos em Paraty não são registros isolados no Brasil. Pelo contrário, representam parte de uma realidade. Um estudo da Rede de Observatórios da Segurança revelou que, em 2022, uma mulher foi vítima de violência a cada quatro horas no país.
Outras histórias
A exposição no prédio colonial oferece também histórias de ativismo, como a defesa de comunidades quilombolas, luta por direitos de pessoas trans e trabalhadoras sexuais, ações antirracistas e relatos de superação, alguns por meio de canais de socorro como a Lei Maria da Penha e o Ligue 180, Central de Atendimento à Mulher, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Além das pinturas e dos depoimentos, a exposição conta com a Sala dos Espelhos, onde o visitante pode se expressar livremente por meio da escrita na superfície espelhada.
“Impactantes e provocativos, os trabalhos artísticos de Panmela Castro têm o poder de sensibilizar diversos públicos e ampliar o debate sobre temas primordiais na atualidade. A partir do papel da arte e da cultura, ações como essa podem contribuir para o desenvolvimento social”, diz a diretora de Programas Sociais do Departamento Nacional do Sesc, Janaina Cunha.
A curadora da exposição, Maybel Sulamita, explica que a mostra não combate apenas uma, mas várias violências. “Cada uma dessas mulheres simboliza temas cruciais relacionados ao enfrentamento à violência, como a construção do gênero, o machismo estrutural, a violência física, a psicológica, a moral, a patrimonial e a sexual”, disse.
Processo de cura
Marta Leiro saiu do Calafate, região da periferia de Salvador, para ser retratada pela Panmela. No relacionamento em que ela vivia, sofria violência porque o agressor não aceitava a participação dela em um coletivo de mulheres em defesa do direito de minorias. “A minha gratidão é por estar viva, de não ter contribuído para estatística do feminicídio no Brasil. Pude sair de uma situação de violência doméstica em um relacionamento violento”, conta.
Ser pintada pela artista foi para ela uma espécie de alívio. “É passar um bálsamo nessa dor. Não é que a gente já supera a dor da violência doméstica, principalmente quando essa violência se aproxima muito do feminicídio. Mas podemos administrar essa dor com esses processos de autocuidado. O momento de ser modelo, de ser pintada, foi como se o pincel passasse um bálsamo na minha vida, nessa história, que toma um outro rumo agora. Um rumo de agradecer ao Universo, valorizar a vida e continuar na luta pelo fim da violência contra as mulheres”, explica.
É justamente essa superação um dos incentivos que motivam a artista visual. “Posso contribuir no enfrentamento da violência usando minha arte como um processo de cura. Esse é o processo curativo. Fora o fato de que exibir essa arte em público faz com que essas protagonistas usem suas histórias para inspirar e informar outras mulheres sobre a situação de abuso”, diz Panmela.
Lana, que mora a mais de 3 mil quilômetros de distância de Paraty, conta que quando viu a pintura “não existia uma dor ali, e sim um processo de cura”. Ela sabe que além de simplesmente arte, o relato e o retrato dela têm o poder de dar frutos. “Ao dividir aquela história ali para que outras mulheres - e provavelmente homens - leiam, existe uma possibilidade de ajuda”, disse.
A exposição Retratos Relatos – subvertendo a dor já percorreu o Museu da República e o Parque das Ruínas, ambos no Rio de Janeiro, e a Vila Cultural Cora Coralina, em Goiânia.
As obras serão incorporadas à Coleção de Arte Sesc Brasil e circularão por diversos estados. “Assim, fortalecemos nossa missão de fomentar a produção artística contemporânea, além de estimular a reflexão e valorizar a cultura brasileira e sua diversidade”, afirma Janaina Cunha, do Sesc.
Serviço:
Exposição Retratos Relatos – subvertendo a dor
Data: Até 3 de setembro
Local: Sesc Santa Rita - Rua Dona Geralda, 320. Centro Histórico, Paraty, RJ.
Horário: Terça a sexta, das 10h às 19h. Sábados, domingos e feriados, das 14h às 19h.
Entrada Franca